20120409

meu soneto do amor maior


Acontecia de sempre ter sido uma apaixonada,
sempre ter se alimentado de paixões.
Acontece que, quando mais nova, fora apaixonada pelo poetinha.


Quanto cliché, diriam-lhe os outros, caçoando do amor que tivera,
por volta dos 15 anos, por esse senhor de meia idade.

E continuariam a tentar lhe magoar: T
odas já são apaixonadas por ele!

Não como ela, 
digo-lhes... Não como ela!

Como ela era apaixonada por ele, outras não havia.

E era-lhe fiel: não lia poemas de outros!

"De tudo, ao meu amor, serei atento
antes, e com tal zelo, e sempre, e tanto,
que mesmo em face do maior encanto
dele se encante mais meu pensamento"

Acreditava mesmo ser a mulher que passa
que ele tanto queria e pedia
em seus versos.

"Meu Deus!, Eu quero a mulher que passa...", 
repetia-lhe o senhor ao ouvido.


É que ela tinha uma fita k-7 com a voz dele gravada
e só dormia, todas as noites,
depois de ouvi-lo declamar seu amor eterno.

"Como te adoro, 
mulher que passa... Que vens e passas,
que me sacias dentro das noites,
dentro dos dias."

Certo dia, 
entretanto, enfureceu-se com o seu poeta.
Partiu-lhe o coração, o amor de sua vida...

Ela descobriu que sua tal Receita de Mulher,
da mulher que ainda não era,
exigia-lhe ser bonita, fundamentalmente.

"As muito feias que me perdoem
mas beleza é fundamental",
repetia-lhe ao ouvido.

Achava-se feia. D
esde o momento do parto: feiíssima!

Assim, não haveria jeito:
viveria para sempre na angústia de saber que nunca bastaria
ao senhor de tantos e tantos anos, e copos e mais copos de uísque na mão,
por quem se apaixonara perdidamente.

Mas, de repente, 
não mais que isso, resolveu voltar-lhe às boas.

É que não havia outra saída, não lhe ocorria amar a mais ninguém.


Assim,
só sua voz doce e abafada ecoava-lhe na cabeça,
noite após noite... E colocou a velha fita k-7 para tocar novamente.

"É preciso 
que tudo isso seja belo
é preciso que, súbito,
tenha-se a impressão de ver uma garça apenas pousada,


e que um rosto adquira, de vez em quando,
essa cor só encontrável no terceiro minuto da aurora."

Descobrindo, assim, o outros versos do mesmo poema tão alardeado,
decidiu que iria mesmo se esforçar para ser bonita.
- Quem sabe, ele não a notaria.

Daí, acordava mais cedo 
e decorava a tal cor do terceiro minuto da aurora!

E tentava ser garça...
- Onde já se viu, um axolotil tentando ser garça?!

De outra vez, ficou-lhe de mal: 
brigou de novo com seu amor eterno,
posto que é chama.


É que descobriu-lhe as preferências
e o odiou eternamente.

"Ah,

deixai-me dizer-vos que é preciso que a mulher que ali está como a corola ante o pássaro
seja bela
ou tenha pelo menos um rosto que lembre um templo...


E seja leve como um resto de nuvem:
mas que seja uma nuvem com olhos e nádegas!
Nádegas é importantíssimo!"

Conseguira tudo 
o que recomendava seu amor,
mas faltavam-lhe as tais nádegas.


Queria nádegas retumbantes!


Foi por isso que brigaram de novo...


Entristeceu-se deveras ao saber das tais nádegas preferidas do poetinha.
Queria ser, para ele, perfeita... A preferida!

"Olhos então... N
em se fala.


Que olhe com certa maldade inocente.


Uma boca fresca (nunca úmida!) é também de extrema pertinência.

É preciso 
que as extremidades sejam magras; que uns ossos despontem,
sobretudo a rótula no cruzar das pernas,
e as pontas pélvicas no enlaçar de uma cintura semovente.

Gravíssimo é, porém, 
o problema das saboneteiras: uma mulher sem saboneteiras
é como um rio sem pontes;
indispensável!"

Assim, 
por conta dos outros atributos que tanto queria numa mulher, perdoou-lhe... Pois tinha os tais olhos que ele descrevera... E um pouco da boca de que ele gostara.
E, também, as extremidades magras
e todos os ossinhos com que o poetinha se deliciava.


Perdoou-lhe, enfim... E beijou-lhe a face na foto antiga.


E gostava muito do finalzinho da Receita,
a qual lhe guiou pela vida inteira, em modos de como se portar e ser mulher.

Ouvia-o na fita k-7, 
quase por estragar de tão ouvida...

"Ah,

que a mulher dê sempre a impressão de que, se fechar os olhos, ao abri-los
ela não estará mais presente com seu sorriso e suas tramas.

Que ela surja, não venha...

E parta, não vá!..."

Então, 
treinava esse abrir e fechar de olhos... E ficava horas na frente do espelho!

E tudo o que queria 
era que o amor de sua vida, aos 15 anos, lhe encontrasse
naquele fim de mundo,


aquele mundo sem fim


e lhe levasse dali...


E lhe fizesse carinho no umbigo, deitados numa rede, num domingo, uma tarde de sol.
Com o tempo, no entanto, a magia foi passando...


E conheceu os rapazes. Ah, os rapazes!


E ensinaram-lhe outros caminhos... E ensinaram-lhe os outros meandros
das palavras e das coisas.

E esqueceu-se 
de seu primeiro amor, aos pouquinhos...


Mas de outra vez, 
leu Ausência,
providencialmente,
e deixou-se levar pela nostalgia.

"Eu deixarei que morra em mim 
o desejo de amar os teus olhos que são tão doces..."

E continuava...

"Não te quero ter 
porque em meu ser está tudo terminado.


Quero só que surjas em mim,
como a fé nos desesperados"

Assim, 
deixou seu amor partir...

E agradeceu-lhe a visita... E
 abraçou-lhe na memória... E chorou na despedida.

"Eu te deixarei... T
u irás e encostarás a tua face em outra face.
Teus dedos enlaçarão outros dedos
e tu desabrocharás para a madrugada"


E repetia o final em voz alta, como que para ele ouvi-la, como que para senti-la...


E dizia:
E eu ficarei só como os veleiros 
nos portos esquecidos e silenciosos.
Mas eu te possuirei mais que ninguém, poetinha, porque poderei partir...


E todas as lamentações do mar, do vento, do céu, das aves e das estrelas
serão a tua voz presente, a tua voz ausente, a tua voz serenizada.

... Meu amor maior

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